SOFRIMENTO
Alcido Fick e a mulher, Melania, seguram a foto do filho,
Arlan, na fazenda da família, no Paraguai. Ele é mantido
refém há sete meses por guerrilheiros
(Foto: Rogério Cassimiro)
Alcido Fick e a mulher, Melania, seguram a foto do filho,
Arlan, na fazenda da família, no Paraguai. Ele é mantido
refém há sete meses por guerrilheiros
(Foto: Rogério Cassimiro)
CAPÍTULO 1 - BRASILEIROS AMEAÇADOS
O inferno na vida da família Fick começou quando o sol desaparecia por
trás da plantação de milho da fazenda deles, no último dia 2 de abril.
Por volta das 7 da noite, Arlan Fick, de 16 anos, jogava videogame no
seu quarto. Seus pais, os brasileiros Alcido, de 58 anos, e Melania, de
56, moradores do Paraguai há mais de 30 anos, esperavam o sono chegar no
quarto ao lado, com a neta, Marisol. Um barulho repentino e incomum
assustou Alcido. “O que é isso?”, pensou. Em seguida, novo estrondo.
Alcido se levantou, pegou seu rifle calibre 22 e encontrou Arlan
atônito. Alguém chutava a porta da varanda de seu quarto. Arlan se
escondeu no canto do cômodo. Marisol e Melania jogaram-se debaixo da
cama. Era um assalto.
Alcido não se entregou. Da entrada do quarto do filho, disparou três vezes em direção ao arrombador. Do lado de fora, houve gritos. Vieram os tiros de revide. Uma das balas estourou a TV nova, de 40 polegadas, que Arlan ganhara não fazia 15 dias. Pela porta dos fundos, um grupo de homens fardados e armados invadiu a casa. Chegou disparando ao quarto em que a família estava. “Somos do EPP! Saiam ou vamos explodir esta casa a granadas”, gritou um dos fardados. A família percebeu, então, o perigo – pior que um
Alcido não se entregou. Da entrada do quarto do filho, disparou três vezes em direção ao arrombador. Do lado de fora, houve gritos. Vieram os tiros de revide. Uma das balas estourou a TV nova, de 40 polegadas, que Arlan ganhara não fazia 15 dias. Pela porta dos fundos, um grupo de homens fardados e armados invadiu a casa. Chegou disparando ao quarto em que a família estava. “Somos do EPP! Saiam ou vamos explodir esta casa a granadas”, gritou um dos fardados. A família percebeu, então, o perigo – pior que um
assalto – e resolveu se render. Na sala ao lado, Arlan foi
obrigado a arrumar uma mala. Queriam levá-lo embora. Alcido, Melania e
Marisol colocaram as mãos na cabeça. Choravam. Havia 14 invasores dentro
da casa. Outros dois estavam à porta da fazenda, armados com
submetralhadoras modernas, Mini-Uzis calibre 9 milímetros.
O tiroteio despertou a atenção da vizinhança. Chamaram as forças
militares que rondam a região. Quando o jipe do Exército parou à entrada
da fazenda dos Ficks, os quatro militares pareceram aliviados ao
avistar duas figuras fardadas se aproximar. Baixaram a guarda. Na
escuridão, não notaram o brasão onde se lia “EPP”, sigla de Exército do
Povo Paraguaio. Houve troca de tiros. Os dois guerrilheiros morreram, um
militar também. Os três militares sobreviventes fugiram rastejando e
convocaram reforços. O tiroteio aumentou a tensão dentro da casa. Os
sequestradores falaram com seus comparsas via rádio, em código. Na
ausência de respostas, agiram rápido. Exigiram que Arlan se apressasse e
que Alcido os acompanhasse. Recolheram as armas dos cadáveres e levaram
Alcido e Arlan.
Na rota de fuga, no meio de um bosque em frente à casa da família, os guerrilheiros pediram US$ 500 mil. Deram a Alcido um papel com orientações sobre onde entregar o dinheiro e um prazo de oito dias. As notas não poderiam ser novas nem antigas, para que não fosse possível rastreá-las. Alcido deveria estar sozinho e adentrar a mata para entregar o resgate. Sem avisar a polícia. Alcido disse que não tinha tanto dinheiro. “Se vira”, foi a resposta. Tentou explicar que poderia conseguir US$ 200 mil com um contato. “Sem contato. Ou traz ou... craaa”, disse um guerrilheiro, enquanto passava a mão pelo pescoço de um lado ao outro. Antes de fugirem floresta adentro, Alcido teve tempo de dizer as últimas palavras a Arlan: “Meu filho, vai com eles e não tenta escapar, porque seu pai vai te tirar daqui. Nem que eu tenha de vender tudo, vou vender”.
>> Brasileiros na mira do terror no Paraguai
Ao amanhecer, parecia que toda a polícia paraguaia aportara em sua fazenda. Alcido não disse nada sobre o pedido de resgate à polícia. Só contou à mulher e a quatro pessoas próximas. Pediu a todos que jurassem silêncio. Uma equipe da polícia antissequestro e militares fardados se instalaram na propriedade. A única preocupação de Alcido era obter os US$ 500 mil. Cada ligação que fazia ao grupo de amigos que sabia do pedido de resgate era intercalada pelo tormento da espera. Os oito dias de prazo se esgotavam. No último dia, um amigo de Alcido mediou um empréstimo salvador. Alcido teria de devolver o dinheiro em cinco anos. Se não, teria de entregar sua fazenda com 124 hectares, a casa e o maquinário agrícola. A poucas horas do fim do prazo, o dinheiro chegou. Veio da capital paraguaia, Assunção, a quase 300 quilômetros da fazenda de Alcido, num carro escoltado por um homem armado.
Com o dinheiro em mãos, Alcido se embrenhou no meio da floresta para
encontrar os guerrilheiros no local descrito por eles. Ou morria numa
emboscada ou voltava com o filho nos braços, pensou. De repente, Alcido
estava frente a frente com seus algozes. Homens fardados e armados até
os dentes. Procurou o filho com os olhos. Não encontrou. Ao entregar o
dinheiro aos guerrilheiros, Alcido quis saber onde estava Arlan. “Seu
filho está bem”, responderam. “Como posso saber?”, disse Alcido. Ficou
sem resposta. Um dos homens jogou a seus pés um saquinho onde estava um
CD. Mandaram Alcido pegar o pacote e ir embora. Na volta para casa,
Alcido chorou como nunca chorara em sua vida. No CD, o EPP mandava
Alcido distribuir US$ 50 mil em mantimentos nos vilarejos da região.
>> FOTOS: O terror do EPP no norte do Paraguai
Passados sete meses, a agonia da família Fick continua. Arlan é mantido pelo EPP nalgum cativeiro entre rios e matas fechadas do norte do Paraguai. No fim de outubro, ÉPOCA teve acesso exclusivo à fazenda dos Ficks. Quando cheguei pela primeira vez à casa da família, na manhã de 24 de outubro, Alcido me recebeu em sua varanda com a pergunta: “Você toma tererê?”. A bebida de mate gelada é tradição no país. Alcido adquiriu o hábito de bebê-la desde que migrou para o Paraguai, no início da década de 1980. Lá, casou-se com Melania, pouco tempo depois. Tiveram três meninas e um menino. Arlan é o filho caçula de Alcido e Melania. Caseiro, ele não gostava de baladas nem de jogar futebol. Preferia jogar videogame horas a fio e ouvir funk e batidão no último volume – para horror de Alcido, que ama sertanejo. Na escola, a matemática e as meninas dividiam suas paixões. Fala espanhol, português e alemão, como seus familiares. Ajudava o pai na fazenda desde os 11 anos, e dele ganhava meio salário mínimo. Com o calor extenuante, gostava de se banhar nos rios da região.
Desde que o EPP levou Arlan, Alcido sofre em silêncio. Parou de comer nos primeiros dez dias do sequestro. Perdeu quase 10 quilos. Melania não esconde a tristeza. Em silêncio, olha as fotos de Arlan impressas em papel sulfite. “Levaram todas as fotos dele”, diz Melania. “Pensei várias vezes em me matar. Você não aguenta, não aceita.”
Uma faísca de esperança chegara dois dias antes de nossa conversa. Um
vídeo com imagens de Arlan, aparentemente bem, fora divulgado pelos
sequestradores. Foi a primeira prova de vida de Arlan em mais de 200
dias de sequestro. Nele, Arlan aparece ao lado de Edelio Morínigo, um
policial sequestrado pelo mesmo grupo há mais de quatro meses. Arlan
diz: “Mamãe, papai. O EPP cumprirá o que prometeu a meu pai e quer se
assegurar que, uma vez libertado, eu possa chegar a minha família são e
salvo”. Depois, diz aos pais que não lhe fizeram nada e que é bem
tratado. “Se Deus quiser, muito em breve estaremos juntos outra vez.”
>> Francisco de Vargas: "O EPP promove uma indústria de sequestros no Paraguai"
O sequestro de Arlan é acompanhado como um folhetim por todos em Paso Tuya (“caminho antigo”, na tradução do guarani), região no norte do Paraguai, vasta, repleta de fazendas e, ultimamente, de militares. No fim dos anos 1970, tornou-se moradia de brasileiros em busca de terras e um futuro melhor. Hoje moram ali em torno de 50 famílias de “brasiguaios”. O impacto do sequestro de Arlan se alastrou por Paso Tuya em ondas de apreensão. Há seis anos a região é ameaçada pelo EPP. Tudo começou com pequenos roubos e furtos de gado. Logo, o EPP começou a atacar os fazendeiros e a distribuir panfletos ameaçadores, exigindo o fim da produção agrícola. Hoje, o EPP aterroriza o norte do Paraguai.
CAPÍTULO 2 - UMA IDEOLOGIA A SERVIÇO DO TERROR
O EPP é um grupo armado que promove atos terroristas para derrubar a democracia, que chama de “burguesa-imperial”, e substituí-la à força, via revolução, por um “governo popular”. É uma versão paraguaia das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, e do Sendero Luminoso, do Peru. A ideologia do grupo é uma mistura incompreensível de marxismo-leninismo com nacionalismo guarani. Proclama como meta uma ampla reforma agrária. A desigualdade do Paraguai, terceiro país mais desigual da América do Sul, alimenta o trabalho do EPP. Alavancado pelas exportações de soja e de carne, o PIB paraguaio cresceu 14,1% em 2013. A população mais pobre do país não se beneficiou desse crescimento. Ao empunhar a bandeira do fim das grandes propriedades rurais, com uma conclamação à guerra contra os ricos, o EPP encontra algum eco entre os mais pobres.
>> Violência de guerrilheiros destrói famílias e cidades no norte do Paraguai
Os ideólogos do EPP, Alcides Oviedo Brítez e Carmen Villalba Ayala, se casaram no fim da década de 1980. Pouco antes, haviam criado um braço armado do Patria Libre, um movimento de esquerda que lutava contra a ditadura militar do general Alfredo Stroessner (1954-1989). O fim da ditadura não satisfez Oviedo e Carmen. Ao longo dos anos 1990, eles e seus asseclas perpetraram uma série de crimes e atentados para financiar a guerrilha. Oviedo e Carmen foram os mentores de sequestros que chocaram o Paraguai. Em 2001, o grupo sequestrou María Edith de Debernardi, mulher de um engenheiro paraguaio, em Assunção. Ela foi libertada em novembro de 2002, após o pagamento de US$ 1 milhão. Em 2004, o grupo fez sua ação mais ousada: sequestrou Cecilia Cubas, filha do ex-presidente Raúl Cubas. Mesmo com o pagamento de US$ 300 mil, Cecilia foi enterrada viva. Oviedo e Carmen foram presos em 2003 e condenados a 18 anos de prisão. Da cadeia, os dois continuam a comandar o EPP. Apesar de atuar há mais de duas décadas, o grupo só foi batizado em março de 2008. Os dois lançaram um programa de ação, difundido pela internet, e deram à guerrilha o nome de Exército do Povo Paraguaio. Sob a sigla EPP, vieram mais atos terroristas, maquinários destruídos, ataques a fazendas e atentados contra policiais. O grupo tem estreitas relações com as Farc, com quem aprendeu suas táticas. Para financiar a compra de armamentos de ponta, investe em sequestros e no tráfico de drogas. No norte do Paraguai, há extensas plantações de maconha, cujos mercados são o Brasil e a Bolívia.
Combater o EPP tem sido uma tarefa árdua para o governo paraguaio. O
ministro do Interior do Paraguai, Francisco de Vargas, disse a ÉPOCA que
ainda levará tempo para que o país consiga desarticular o EPP. O
governo do presidente Horacio Cartes, que tomou posse em agosto de 2013,
promete intensificar projetos sociais de educação, saúde e moradia no
norte – para combater o EPP no discurso. “Eles dizem que são a favor do
povo, mas muitas de suas vítimas são pobres. É uma lógica incoerente”,
diz Vargas. O embate ideológico é duro, mas é o combate armado que
assusta a população. Bases militares se espalharam na zona vermelha de
atuação do EPP. Segundo um agente do Ministério do Interior, há 12
destacamentos no norte, com um contingente de cerca de 800 homens. Fui
parado pelo menos quatro vezes por policiais ou militares na rota
internacional que leva ao Brasil e à Bolívia. Por ali, é fácil avistar
tanques de guerra rondando. Nos últimos dois meses, 13 pessoas ligadas
ao EPP foram detidas, e seis mortas, entre combatentes e apoiadores do
grupo. O governo paraguaio oferece US$ 4,5 milhões pela captura de 26
guerrilheiros foragidos e quatro apoiadores da guerrilha – a maioria
familiares ou pessoas próximas.
A pressão sobre o EPP fez o grupo divulgar o vídeo de Arlan vivo depois de 203 dias de dúvidas. As ações contra o EPP vêm dando resultados, mas ninguém sabe se serão suficientes para libertar Arlan. Por um motivo simples: Arlan é o maior trunfo do EPP.
CAPÍTULO 3 - ONDE ESTÁ ARLAN?
As forças de segurança não estão próximas de capturar Arlan. Ao contrário. O EPP move-se de noite, tem espiões no norte e deixa poucos rastros. Muitos policiais e militares paraguaios com quem conversei apostam que o EPP mantém Arlan sob sequestro para projetar uma imagem de poder e infundir medo na população em relação a futuras ações da guerrilha. Com o foco da imprensa no grupo, o EPP também aposta em ampliar o eco de seu discurso radical, tanto no Paraguai como no exterior.
Hoje, além de Arlan, o grupo mantém em cativeiro o policial Edelio Morínigo, de 25 anos, sequestrado desde julho. Um militar de alta patente que atua na região de Paso Tuya diz que Morínigo corre mais risco que Arlan. No vídeo do EPP sem cortes, obtido por ÉPOCA, os guerrilheiros dizem que executarão Morínigo caso o governo paraguaio não o troque por seis presos – Carmen e Oviedo entre eles. “Corto minha orelha como não farão nada com Arlan por enquanto”, diz o militar. “Ele virou o pilar de sustentação do grupo com a comoção que criou. Morínigo corre mais perigo.”
A 120 quilômetros de Paso Tuya, na cidade de Concepción, a mãe de
Morínigo, a dona de casa Obdulia Florenciano, de 48 anos, está exausta.
Seu sofrimento é visível mais pelo silêncio que pelas palavras. “Se meu
filho tiver de morrer para acabar meu sofrimento e para que esse grupo
possa sumir, que assim seja”, diz ela, sobre uma rede sustentada por uma
mangueira. “Se isso acontecer, que matem esses seis do EPP que estão
presos. Não é justo uma mãe passar por isso.”
Melania, a mãe de Arlan, compartilha o sofrimento de Obdulia. “É uma dor muito forte. Eu pedia às pessoas na vizinhança que me mandassem ao menos um papelzinho para a gente saber se ele está vivo ou morto. E nada”, diz. “Quando vi o último vídeo, foi uma tristeza muito grande. Não posso tocar nele. Essa dor, essa angústia, a dúvida em saber se ele está vivo ou morto.” É a fé que sustenta a família Fick. Na casa deles, há um altar para Maria Rosa Mística – uma imagem, diz Alcido, enviada da Itália ao Paraguai e tida como milagrosa. As orações tomaram o lugar do bilhar, da bocha e do carteado, passatempos comuns quando Arlan estava entre eles.
Na manhã do dia 28 de outubro, 11 militares entraram na fazenda dos Ficks com Milciades Ramón, capelão da polícia nacional paraguaia. Ele fora rezar uma missa por Arlan e prestar solidariedade. Comparou o drama da família ao do povo hebreu, privado de sua liberdade pelos egípcios. “Hoje vocês sofrem como o povo israelense sofreu. Com angústia, tristeza, e não encontram uma saída. Oremos.” Alcido disse que, se Arlan morresse, ele “nunca mais recobraria a fé”. Dois litros de tererê depois, Melania despachou aos gritos a neta Marisol, para que ela pegasse o ônibus da escola. Passou a esperar pela filha Neusa. Era meio-dia. Ambas planejavam rezar na igreja do vilarejo de Yby Yaú – a 40 quilômetros de distância. “Sempre fui feliz no Paraguai, até acontecer isso”, diz Melania, enquanto o ônibus escolar levantava poeira. “Perdemos uma filha com 21 dias, a Edineia, em 1993, por um erro médico. Teria hoje 21 anos. É dolorido você perder uma criança. Mas isso aqui é muito pior. Porque Edneia não tem mais fome. Sei onde ela está. Posso ir lá e deixar uma rosa para ela.”
Na rota de fuga, no meio de um bosque em frente à casa da família, os guerrilheiros pediram US$ 500 mil. Deram a Alcido um papel com orientações sobre onde entregar o dinheiro e um prazo de oito dias. As notas não poderiam ser novas nem antigas, para que não fosse possível rastreá-las. Alcido deveria estar sozinho e adentrar a mata para entregar o resgate. Sem avisar a polícia. Alcido disse que não tinha tanto dinheiro. “Se vira”, foi a resposta. Tentou explicar que poderia conseguir US$ 200 mil com um contato. “Sem contato. Ou traz ou... craaa”, disse um guerrilheiro, enquanto passava a mão pelo pescoço de um lado ao outro. Antes de fugirem floresta adentro, Alcido teve tempo de dizer as últimas palavras a Arlan: “Meu filho, vai com eles e não tenta escapar, porque seu pai vai te tirar daqui. Nem que eu tenha de vender tudo, vou vender”.
>> Brasileiros na mira do terror no Paraguai
Ao amanhecer, parecia que toda a polícia paraguaia aportara em sua fazenda. Alcido não disse nada sobre o pedido de resgate à polícia. Só contou à mulher e a quatro pessoas próximas. Pediu a todos que jurassem silêncio. Uma equipe da polícia antissequestro e militares fardados se instalaram na propriedade. A única preocupação de Alcido era obter os US$ 500 mil. Cada ligação que fazia ao grupo de amigos que sabia do pedido de resgate era intercalada pelo tormento da espera. Os oito dias de prazo se esgotavam. No último dia, um amigo de Alcido mediou um empréstimo salvador. Alcido teria de devolver o dinheiro em cinco anos. Se não, teria de entregar sua fazenda com 124 hectares, a casa e o maquinário agrícola. A poucas horas do fim do prazo, o dinheiro chegou. Veio da capital paraguaia, Assunção, a quase 300 quilômetros da fazenda de Alcido, num carro escoltado por um homem armado.
>> FOTOS: O terror do EPP no norte do Paraguai
Passados sete meses, a agonia da família Fick continua. Arlan é mantido pelo EPP nalgum cativeiro entre rios e matas fechadas do norte do Paraguai. No fim de outubro, ÉPOCA teve acesso exclusivo à fazenda dos Ficks. Quando cheguei pela primeira vez à casa da família, na manhã de 24 de outubro, Alcido me recebeu em sua varanda com a pergunta: “Você toma tererê?”. A bebida de mate gelada é tradição no país. Alcido adquiriu o hábito de bebê-la desde que migrou para o Paraguai, no início da década de 1980. Lá, casou-se com Melania, pouco tempo depois. Tiveram três meninas e um menino. Arlan é o filho caçula de Alcido e Melania. Caseiro, ele não gostava de baladas nem de jogar futebol. Preferia jogar videogame horas a fio e ouvir funk e batidão no último volume – para horror de Alcido, que ama sertanejo. Na escola, a matemática e as meninas dividiam suas paixões. Fala espanhol, português e alemão, como seus familiares. Ajudava o pai na fazenda desde os 11 anos, e dele ganhava meio salário mínimo. Com o calor extenuante, gostava de se banhar nos rios da região.
Desde que o EPP levou Arlan, Alcido sofre em silêncio. Parou de comer nos primeiros dez dias do sequestro. Perdeu quase 10 quilos. Melania não esconde a tristeza. Em silêncio, olha as fotos de Arlan impressas em papel sulfite. “Levaram todas as fotos dele”, diz Melania. “Pensei várias vezes em me matar. Você não aguenta, não aceita.”
>> Francisco de Vargas: "O EPP promove uma indústria de sequestros no Paraguai"
O sequestro de Arlan é acompanhado como um folhetim por todos em Paso Tuya (“caminho antigo”, na tradução do guarani), região no norte do Paraguai, vasta, repleta de fazendas e, ultimamente, de militares. No fim dos anos 1970, tornou-se moradia de brasileiros em busca de terras e um futuro melhor. Hoje moram ali em torno de 50 famílias de “brasiguaios”. O impacto do sequestro de Arlan se alastrou por Paso Tuya em ondas de apreensão. Há seis anos a região é ameaçada pelo EPP. Tudo começou com pequenos roubos e furtos de gado. Logo, o EPP começou a atacar os fazendeiros e a distribuir panfletos ameaçadores, exigindo o fim da produção agrícola. Hoje, o EPP aterroriza o norte do Paraguai.
CAPÍTULO 2 - UMA IDEOLOGIA A SERVIÇO DO TERROR
O EPP é um grupo armado que promove atos terroristas para derrubar a democracia, que chama de “burguesa-imperial”, e substituí-la à força, via revolução, por um “governo popular”. É uma versão paraguaia das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, e do Sendero Luminoso, do Peru. A ideologia do grupo é uma mistura incompreensível de marxismo-leninismo com nacionalismo guarani. Proclama como meta uma ampla reforma agrária. A desigualdade do Paraguai, terceiro país mais desigual da América do Sul, alimenta o trabalho do EPP. Alavancado pelas exportações de soja e de carne, o PIB paraguaio cresceu 14,1% em 2013. A população mais pobre do país não se beneficiou desse crescimento. Ao empunhar a bandeira do fim das grandes propriedades rurais, com uma conclamação à guerra contra os ricos, o EPP encontra algum eco entre os mais pobres.
>> Violência de guerrilheiros destrói famílias e cidades no norte do Paraguai
Os ideólogos do EPP, Alcides Oviedo Brítez e Carmen Villalba Ayala, se casaram no fim da década de 1980. Pouco antes, haviam criado um braço armado do Patria Libre, um movimento de esquerda que lutava contra a ditadura militar do general Alfredo Stroessner (1954-1989). O fim da ditadura não satisfez Oviedo e Carmen. Ao longo dos anos 1990, eles e seus asseclas perpetraram uma série de crimes e atentados para financiar a guerrilha. Oviedo e Carmen foram os mentores de sequestros que chocaram o Paraguai. Em 2001, o grupo sequestrou María Edith de Debernardi, mulher de um engenheiro paraguaio, em Assunção. Ela foi libertada em novembro de 2002, após o pagamento de US$ 1 milhão. Em 2004, o grupo fez sua ação mais ousada: sequestrou Cecilia Cubas, filha do ex-presidente Raúl Cubas. Mesmo com o pagamento de US$ 300 mil, Cecilia foi enterrada viva. Oviedo e Carmen foram presos em 2003 e condenados a 18 anos de prisão. Da cadeia, os dois continuam a comandar o EPP. Apesar de atuar há mais de duas décadas, o grupo só foi batizado em março de 2008. Os dois lançaram um programa de ação, difundido pela internet, e deram à guerrilha o nome de Exército do Povo Paraguaio. Sob a sigla EPP, vieram mais atos terroristas, maquinários destruídos, ataques a fazendas e atentados contra policiais. O grupo tem estreitas relações com as Farc, com quem aprendeu suas táticas. Para financiar a compra de armamentos de ponta, investe em sequestros e no tráfico de drogas. No norte do Paraguai, há extensas plantações de maconha, cujos mercados são o Brasil e a Bolívia.
A pressão sobre o EPP fez o grupo divulgar o vídeo de Arlan vivo depois de 203 dias de dúvidas. As ações contra o EPP vêm dando resultados, mas ninguém sabe se serão suficientes para libertar Arlan. Por um motivo simples: Arlan é o maior trunfo do EPP.
CAPÍTULO 3 - ONDE ESTÁ ARLAN?
As forças de segurança não estão próximas de capturar Arlan. Ao contrário. O EPP move-se de noite, tem espiões no norte e deixa poucos rastros. Muitos policiais e militares paraguaios com quem conversei apostam que o EPP mantém Arlan sob sequestro para projetar uma imagem de poder e infundir medo na população em relação a futuras ações da guerrilha. Com o foco da imprensa no grupo, o EPP também aposta em ampliar o eco de seu discurso radical, tanto no Paraguai como no exterior.
Hoje, além de Arlan, o grupo mantém em cativeiro o policial Edelio Morínigo, de 25 anos, sequestrado desde julho. Um militar de alta patente que atua na região de Paso Tuya diz que Morínigo corre mais risco que Arlan. No vídeo do EPP sem cortes, obtido por ÉPOCA, os guerrilheiros dizem que executarão Morínigo caso o governo paraguaio não o troque por seis presos – Carmen e Oviedo entre eles. “Corto minha orelha como não farão nada com Arlan por enquanto”, diz o militar. “Ele virou o pilar de sustentação do grupo com a comoção que criou. Morínigo corre mais perigo.”
Melania, a mãe de Arlan, compartilha o sofrimento de Obdulia. “É uma dor muito forte. Eu pedia às pessoas na vizinhança que me mandassem ao menos um papelzinho para a gente saber se ele está vivo ou morto. E nada”, diz. “Quando vi o último vídeo, foi uma tristeza muito grande. Não posso tocar nele. Essa dor, essa angústia, a dúvida em saber se ele está vivo ou morto.” É a fé que sustenta a família Fick. Na casa deles, há um altar para Maria Rosa Mística – uma imagem, diz Alcido, enviada da Itália ao Paraguai e tida como milagrosa. As orações tomaram o lugar do bilhar, da bocha e do carteado, passatempos comuns quando Arlan estava entre eles.
Na manhã do dia 28 de outubro, 11 militares entraram na fazenda dos Ficks com Milciades Ramón, capelão da polícia nacional paraguaia. Ele fora rezar uma missa por Arlan e prestar solidariedade. Comparou o drama da família ao do povo hebreu, privado de sua liberdade pelos egípcios. “Hoje vocês sofrem como o povo israelense sofreu. Com angústia, tristeza, e não encontram uma saída. Oremos.” Alcido disse que, se Arlan morresse, ele “nunca mais recobraria a fé”. Dois litros de tererê depois, Melania despachou aos gritos a neta Marisol, para que ela pegasse o ônibus da escola. Passou a esperar pela filha Neusa. Era meio-dia. Ambas planejavam rezar na igreja do vilarejo de Yby Yaú – a 40 quilômetros de distância. “Sempre fui feliz no Paraguai, até acontecer isso”, diz Melania, enquanto o ônibus escolar levantava poeira. “Perdemos uma filha com 21 dias, a Edineia, em 1993, por um erro médico. Teria hoje 21 anos. É dolorido você perder uma criança. Mas isso aqui é muito pior. Porque Edneia não tem mais fome. Sei onde ela está. Posso ir lá e deixar uma rosa para ela.”
Fonte: Época
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