A TROPA ACUADA - Sepultamento do cabo Mikami: os militares
estão em desvantagem nos domínios do tráfico no Complexo da Maré
(Rafa Von Zuben/Código 19/Estadão Conteúdo)
VEJA foi ao Complexo da Maré na quarta-feira passada, cinco dias depois da morte do cabo Mikami. O “território retomado”, a “comunidade pacificada”, da propaganda oficial, vivia sua rotina esquizofrênica. As ruas eram patrulhadas por jovens armados com pistolas e radiocomunicadores. A menos de 100 metros de um posto do Exército guarnecido com seis soldados, o carro da equipe de VEJA foi parado pelos traficantes e vistoriado. O gerente do grupo concordou em falar, sem se identificar, dentro de um bar. Ali, tranquilo, deu uma espantosa explicação para a coabitação de militares com bandidos em um mesmo território: os criminosos têm a vantagem por estarem bem armados e conhecerem melhor a região. A morte do cabo Mikami foi descrita por ele como um evento normal, incapaz de perturbar a “paz” do lugar: “Se a gente quisesse, matava um soldado por dia”.
O plano de pacificação que começou em 2008 no Rio de Janeiro teve sucessos iniciais estrondosos com favelas tomadas sem o disparo de um único tiro. No ponto mais alto dos morros, os policiais de elite hasteavam bandeiras do Brasil, do Rio de Janeiro e de suas corporações. Mas, sem que se desse a efetiva ocupação do território pelo estado, as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) instaladas nas favelas foram sendo isoladas até chegar à situação atual de monumentos ao fracasso de um plano que parecia vitorioso. Não é raro a guarnição de uma UPP pedir a intervenção de unidades de elite para conseguir sair de sua base. Só no conjunto de favelas do Alemão foram registradas quase duas centenas de tiroteios, escaramuças inconsequentes entre policiais e bandidos, sem que nenhum lado se declarasse vencedor.
Na famosa Favela da Rocinha, a presença constante de 700 policiais não consegue impor a ordem, tampouco impedir o tráfico de drogas e os crimes violentos associados a ele. Rajadas de fuzis automáticos cortam o céu noturno do morro que foi durante algum tempo a vitrine da política de pacificação na cidade. Entre os 267 policiais baleados neste ano, 79 foram feridos em combates em áreas de UPPs, onde oito morreram.
É melancólico constatar que sob o rótulo de “pacificação” esteja ocorrendo mesmo uma guerra. Além dos policiais mortos, perderam a vida no Rio de Janeiro até outubro 481 pessoas em circunstâncias oficialmente registradas em “autos de resistência”. Esse termo deveria descrever apenas situação em que, esgotadas todas as outras opções, a polícia recorre às armas para deter um criminoso. Infelizmente, no Rio de Janeiro, o “auto de resistência” pode ser mesmo a clássica “resistência seguida de morte”, mas serve também para encobrir ações de criminosos de farda. A boa notícia desse lado da trincheira é que as mortes de civis em operações policiais na cidade têm diminuído ano a ano: em 2007, antes do início das UPPs, foram 1 330. A má é que mais policiais estão sendo assassinados. “A verdade é que a polícia está matando menos, mas seus homens continuam morrendo como moscas”, diz Richard Ybars, antropólogo e policial civil.
A lógica mais simples levanta a seguinte questão quando alguém se detém diante da resistência do tráfico no Rio de Janeiro: se os morros não produzem drogas nem têm fábricas de armas pesadas, não seria o caso de, em vez de correr em vão atrás do varejo, impedir no atacado o fornecimento de cocaína e fuzis AK-47 aos bandidos? Raramente se consegue uma resposta satisfatória a essa pergunta. Uma fresta de luz, porém, entra no debate quando se analisam as favelas do Complexo da Maré. Com seus 130 000 habitantes, a Maré tem localização geográfica estratégica. Fica próxima do Aeroporto Internacional Tom Jobim e tem saída para o mar. A área é contígua às duas principais vias de trânsito da cidade, a Linha Vermelha e a Avenida Brasil. “A Maré é muito importante na geopolítica do tráfico, porque quase tudo passa por ela. Para os criminosos, é essencial comandá-la”, diz o sociólogo Cláudio Beato, especialista em segurança pública. Com sua óbvia importância tanto para o atacado quanto para o varejo do comércio ilegal de drogas, o Complexo da Maré deveria merecer atenção especial das autoridades. A região é policiada por soldados jovens vindos de diversas partes do Brasil e treinados — quando são — para outro tipo de batalha. “Essa guerra não é nossa”, disse um deles a VEJA. Não é mesmo. O militar das Forças Armadas é treinado para matar o inimigo. Suas armas são canhões, bazucas, carros de combate, jatos e navios de guerra. Reduzidas à função policial, as Forças Armadas correm o risco de ser desmoralizadas por ter sido colocadas em uma guerra que não podem vencer.
/Reuters
O despreparo é uma queixa comum também em relação às forças que
operam nas 38 UPPs do Rio — um contingente incrementado ao ritmo de até
500 homens por mês, formados a toque de caixa para cumprir a meta de pôr
a segurança nas favelas nas mãos de uma tropa nova, livre de vícios. “A
ânsia política de colocar novas turmas nos morros prejudica a
formação”, afirma Paulo Storani, ex-capitão do Bope. A tropa das UPPs é
de fato majoritariamente nova, mas nem por isso vícios como corrupção,
desvios e apatia foram extirpados. “A intenção era ‘uppeizar’ a PM, mas o
que se vê é a ‘peemização’ das UPPs”, diz Beato.
AÇÃO E REAÇÃO - Patrulhamento em Nova York, onde os assassinos de policiais recebem pena máxima
Entre setembro e outubro, duas operações do Ministério Público contra a corrupção na polícia puseram na cadeia mais de quarenta homens. Os promotores investigam ainda uma fraude milionária em unidades de saúde da corporação que deve levar à prisão de mais oficiais. Em consequência dessas denúncias, o comando da PM foi trocado. É um movimento positivo, mas será preciso bem mais do que operações episódicas para reverter a derrocada da segurança no Rio e impedir que as UPPs sejam lembradas apenas como mais uma das tantas utopias massacradas pela realidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário