por Paulo Roberto
de Almeida
No
último capítulo do seu Príncipe, Maquiavel faz uma “Exortação
para tentar libertar a Itália dos bárbaros”. Estes eram invasores
estrangeiros que devastavam os vários reinos, principados e
repúblicas independentes em que se dividia a península de tradições
seculares. Maquiavel esperava que um novo príncipe, ou alguma
liderança providencial, conduzisse o povo italiano por novos
caminhos.
Não é seguro que a nação brasileira encontre-se hoje
tão “espoliada e lacerada”, ou que tenha de suportar “ruína de toda
sorte”, como no caso da Itália de Maquiavel. Mas ela encontra-se,
certamente, desesperançada e agoniada. O Brasil dispõe de uma
democracia plena, ainda que de baixa qualidade intrínseca e com
inúmeros defeitos formais e substantivos. O maior defeito de sua
democracia, quiçá, é o total despeito dos direitos da cidadania, dos
direitos elementares dos cidadãos mais humildes, fonte provável do
clima de violência e de insegurança que vitima a todos e cada um,
nos mais diferentes cantos do país.
Ocorrem aqui desventuras de toda a espécie, a começar
pela incapacidade das elites em assegurar os direitos da cidadania,
o que traduziu-se, recentemente, na mais profunda degradação dos
costumes políticos já conhecida na história da nação. Há um aumento
da corrupção em todas as partes e a extorsão diária por um sistema
de derrama mais insidioso do que o dos antigos opressores coloniais;
há a deterioração dos serviços públicos, o aumento da insegurança
nas cidades, as mortes evitáveis ocorrendo em casas de saúde e
outras mortes estúpidas nos cárceres lotados ou em combates entre
agentes públicos e criminosos de baixa extração. Mas também existem
criminosos de alta estirpe escapando da justiça por defeitos de
procedimento, ou por comprar aqueles que os deveriam julgar; há
dinheiro público sendo desviado e recursos esvaindo-se em obras
inexistentes ou superfaturadas, com a conivência daqueles mesmos que
deveriam fiscalizá-las.
Diferentemente do que pretendia Maquiavel para a sua
Itália, nenhum líder providencial salvará esta nação a não ser que
ela mesma queira ser salva, por seu próprio esforço, empenho e
dedicação. Nenhum príncipe iluminado será capaz de redimir a nação
de seus males mais conhecidos, a não ser que ela própria tome em
suas mãos essa tarefa. Nem se vê, no presente, por que a nação
deveria confiar o seu destino a mais um representante do Estado,
quando vêm do próprio Estado os mais insidiosos ataques ao seu
bem-estar e prosperidade.
Por acaso, não estão as fontes da corrupção
concentradas no Estado, sendo os agentes públicos os seus promotores
mais ativos? Não se vê que o estímulo à sonegação brota de um
sistema de arrecadação extorsivo e da cobrança extensiva de toda
sorte de impostos, taxas e contribuições, que tira dos privados a
poupança que eles poderiam empregar para fins produtivos? Não se
constata que toda essa arrecadação – e os pobres pagam mais dos que
os ricos, no sistema regressivo dos impostos indiretos – não
revertem em serviços para o povo, mas alimentam o gigante estatal,
que cresce exageradamente há décadas?
À diferença dos tempos de Maquiavel, soldados
invasores e mercenários à soldo não são bárbaros estrangeiros, e sim
inimigos daqui mesmo. Nossos quatro cavaleiros do apocalipse são: o
mau governo, a injustiça, a corrupção e a má educação. Em todas as
partes da nação, temos notícias dos terríveis efeitos desses males
nacionais sobre o moral do nosso povo. São eles a fonte última de
toda violência e dos piores atentados aos direitos da cidadania. Já
está na hora de combatermos nossos próprios bárbaros.
Não se pense em terroristas profissionais, em
homens-bomba que se explodem com a alegria prometida aos justos. Não
falamos de fundamentalistas que só admitem a verdade da sua própria
religião, de intolerantes prontos a queimar e a trucidar em defesa
de suas crenças. Esses são desajustados no mundo do livre arbítrio,
da liberdade de pensamento, da democracia e dos direitos humanos, o
que não impede que eles sejam, ao mesmo tempo, criminosos da pior
espécie. Esses bárbaros não são novos: sua origem remonta às seitas
dos assassinos, às guerras de religião em reinos pretensamente
piedosos, aos tempos de caça às bruxas, dos dogmatismos e dos grupos
mafiosos, que estão conosco há vários séculos.
Falamos de “novos bárbaros”, uma classe especial de
um gênero universal, que proliferou de forma incontrolada nesta
nação. Quem são estes “novos bárbaros”, que sugam o sangue do nosso
povo, que limitam a capacidade de crescimento de sua economia, que
dificultam o funcionamento e até a consolidação de instituições
sólidas de governança? Quem são esses formidáveis obstrutores da boa
educação pública em todos os níveis, do provimento de justiça, onde
a justiça é devida, da garantia de segurança pública, nas casas e
nas ruas? Quem são os que conspiram contra a simples aspiração do
povo em ter um futuro melhor para os seus filhos, com emprego e
renda decentes, com serviços públicos de qualidade, ou de poder
dispor, no próprio mercado, de todo tipo de bem ou serviço, sem
enfrentar monopólios, preços de cartéis, colusões organizadas e
protegidas pelo Estado, que deveria pensar, antes de tudo, no
interesse do cidadão comum? Quem são esses bárbaros que nos assolam
regularmente, com nossa própria conivência?
Não é difícil identificá-los, pois eles estão todos
os dias nas folhas impressas e nos meios de comunicação, eles entram
em nossas casas sem que saibamos ou possamos impedir, eles tomam
nossas terras sem que as autoridades se comovam, eles invadem
prédios públicos sem que o poder legítimo se empenhe em
desalojá-los, eles assaltam os cofres públicos quase à luz do dia,
por meio de subterfúgios que são criados, paradoxalmente, justamente
para evitar esse tipo de apropriação indébita. Estes nossos bárbaros
não usam armaduras ou máscaras, no máximo identidades falsas; eles
não são bandoleiros de estradas, como nos tempos de Maquiavel,
embora também os haja; mas estes não são os mais danosos, no plano
patrimonial privado ou do ponto de vista do tesouro público. Eles,
na verdade, são nossos conhecidos e com eles interagimos quase todos
os dias. Eles estão entre nós. Eles “somos” nós, ou quase...
Os novos bárbaros são os políticos demagogos e
desonestos, que se elegem com grandes promessas de obras e
realizações, mas que logo fazem dos negócios públicos o seu negócio
particular, aquele pelo qual vivem e do qual vivem. Eles são os
juizes venais, que se vendem por um punhado de moedas, a despeito de
já ostentarem os maiores salários deste “principado”; existem,
também, os que são honestos pessoalmente, mas que pretendem fazer
justiça com as próprias mãos, isto é, interpretam a lei de forma
distorcida para defender supostas causas sociais, quando não “criam”
eles próprios a lei, em defesa de ideologias obscuras. Bárbaros
também são os capitalistas promíscuos, que preferem ganhar dinheiro
em colusão com funcionários públicos, afastando a concorrência, via
cartéis arranjados e tarifas altas; são os que procuram uma
participação “especial” em compras governamentais e é por meio
destas que se opera a conjugação de interesses especiais de
funcionários públicos e de parlamentares com o capitalismo de
compadrio, que não é uma especialidade exclusiva desta nação, mas
que aqui se aclimatou muito bem.
Deixando as esferas da alta política ou do grande
capital, encontramos também outros bárbaros, na burocracia média,
nas universidades, nas classes liberais, na esfera comercial. Há
funcionários de governo que se servem do Estado, em vez de servir ao
público; professores de universidades públicas que acreditam que a
sociedade tem a “obrigação” de doar recursos às suas entidades, sem
que tenham de prestar contas de sua produção ou de submetê-la a
avaliações independentes; advogados sem escrúpulos que se
especializam nas chamadas filigranas jurídicas para livrar notórios
criminosos das garras da lei; por último, mas não menos importante,
empresários que mantêm “caixa dois” como se fosse um alter ego
literário. Muitos justificam o expediente escuso a pretexto de se
defender contra as exações fiscais das autoridades da receita, e
nisso recebem a colaboração de fiscais inventivos, sempre prontos a
dar um abatimento de 50% na multa devida, desde que a arrecadação se
faça também por vias paralelas. Ao fim e ao cabo, as classes médias
se consideram vítimas de um sistema injusto, pelo qual elas não se
sentem responsáveis, mas estão prontas a se utilizar dos pequenos
benefícios de um sistema profundamente desigual e iníquo que
perpetua desigualdades e pequenas contravenções, retardando o pleno
estabelecimento do império da lei.
Há toda uma categoria especial de manipuladores da
ingenuidade alheia, que são os adeptos da “teologia da
prosperidade”: eles iludem os humildes – e outros nem tão humildes –
agitando ameaças do capeta, de um lado, e promessas de redenção
divina, de outro. Trata-se, talvez, do mais lucrativo investimento
já conhecido na história econômica mundial, pois que os insumos e os
meios de produção desses bárbaros religiosos não são feitos de
matérias-primas ou de equipamentos, e sim de pura retórica, a
fabricação literal de ouro, uma nova forma de alquimia, bem melhor
do que aquela praticada nos tempos de Maquiavel.
Existem outros bárbaros, igualmente, nas chamadas
“classes subalternas”, muitos deles simples ingênuos de espírito,
manipulados por pretensos militantes intelectualmente desonestos,
prontos a condenar o agronegócio e a comandar uma invasão de
laboratórios e campos de experimentação de espécies elaboradas pela
mão do homem, numa réplica de antigos ataques ludditas, tão
obscurantistas quanto nefastos ao desenvolvimento de uma ciência
libertadora de penúrias ancestrais. Existem falsos sindicalistas,
que montam cartórios legais de extração de recursos dos
trabalhadores, a pretexto de representação classista. Existem
movimentos ditos minoritários, de inclinação racial, propensos a
criar novas formas de apartheid social e cultural, sob escusa de
redimir antigas injustiças. Há os que acreditam que a riqueza deve
ser distribuída pelos estoques patrimoniais, não por fluxos
crescentes de renda do trabalho, e que se entregam às invasões de
propriedades urbanas e rurais, como profissionais da “expropriação
social”.
Temos de lutar contra esses bárbaros: contra os que
pretendem destruir nossas instituições democráticas pela via de
velhos arremedos de “poder popular” e de “democracia direta”, que
constituem um insulto à teoria e à prática da representação
política; contra os que querem limitar a liberdade de imprensa a
pretexto de “responsabilidade social”; contra os que querem fazer a
escola retroceder a tempos obscurantistas de explicações ingênuas e
anti-científicas; contra os que aspiram a dividir o povo em
categorias raciais estanques, sob escusa de redimir antigas
injustiças; contra os que defendem privilégios inaceitáveis, como os
do foro privilegiado para políticos de província e pensões
milionárias para os que exerceram cargos públicos por escasso tempo.
Temos de defender a república contra todos os agentes corruptores,
muitos deles eleitos por nós mesmos para altos cargos nas
instituições de representação política.
Nós carregamos uma parte de responsabilidade por
essas deficiências que impedem a nação de deslanchar e de conformar
uma situação mais amena no plano social, sobretudo em favor das
classes menos favorecidas. Não se trata de colocar este “principado”
numa posição de grande potência ou de pretender igualá-lo ao mais
possante dos impérios, numa vã pretensão à grandeza que não ajuda em
nada a diminuir o fosso de iniqüidades que separa as classes
abastadas das menos privilegiadas. O que se pretende é reduzir o
grau de sofrimento humano embutido no atual sistema de reprodução de
desigualdades. Isto se obtém pela eliminação do mau governo, pela
diminuição da corrupção, pelo adequado funcionamento da justiça e,
sobretudo, pela elevação de todos os cidadãos a um patamar mais
condizente de dignidade social pela via da educação de qualidade
para todos.
Para isso, não se deve esperar por nenhum “redentor”
da nação. Não se quer um príncipe guerreiro, menos ainda autoritário
ou pretensamente iluminado. Não se trata de construir o Estado a
partir do nada, como no tempo de Maquiavel, mas de reconstruí-lo em
novas bases, convertendo-o, de obstrutor do crescimento, o que ele é
hoje, de fato, em um promotor das condições pelas quais possa ser
estimulado o desenvolvimento da nação. O Estado precisa ser colocado
em seu devido lugar, de simples administração das coisas. Trata-se
de restabelecer o controle da própria sociedade sobre a
administração dos homens. Toda a insegurança pública deriva, hoje,
da incapacidade do Estado em prover esse bem primário de que
necessitam todos os cidadãos. Se ele não o faz é porque se desviou
de sua missão fundamental e básica, que é a de zelar para vida e a
segurança dos que lhe pagam impostos. Temos de recolocar o Estado na
sua função precípua de zelar pelo bem comum e antes de tudo pela
segurança dos cidadãos. Quanto à criação de riqueza, a própria
sociedade se encarregará disso...
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